Cinema escrito

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quarta-feira, outubro 27, 2004

“Noite Escura”

“Um mundo escondido onde a vida não tem preço e onde tudo se vende”
João Canijo

Algures no Portugal profundo, existe uma casa de alterne que ficará marcada pela tragédia. A noite começava com qualquer outra. O movimento era habitual. Contudo, a partir daquela noite, a família que controlava a casa nunca mais seria a mesma.
O pai, Nelson, (Fernando Luís) e a mãe, Celeste, ( a oxigenada Rita Blanco), que já foi prostituta e agora é “madama”, gerem o bordel. Carla, a filha mais velha, (Beatriz Batarda) é o “patinho feio” e a escrava da família e Sónia, a mais nova, (Cleia Almeida) sonha ser cantora de música pimba. As meninas entretêm e seduzem os clientes.
Naquela noite, um negócio corre mal ao pai e o efeito imediato disso é a “venda” da filha mais nova à máfia russa. A partir daqui, o rumo da trama já está praticamente traçado: a fatalidade atingirá o coração desta família.
Esta é, apenas, uma das muitas versões do último filme de João Canijo. O universo abafado do submundo dos bares de alterne foi o cenário escolhido pelo cineasta para “Noite Escura”. O realizador de “Sapatos Pretos” consegue com este filme o seu melhor desempenho.

Dois anos de “noites escuras”

João Canijo, o realizador, foi, durante dois anos, actor no seu próprio filme. Percorreu Portugal de norte a sul, de bar em bar de alterne, à procura da essência para a sua produção.
Envolvido por luzes vermelhas, quadros com fotografias a preto e branco e desenhos eróticos, ao som de Diana Krall, Sting, Peter Gabriel e Supertramp, Canijo foi absorvendo o ambiente e começando a dominar os códigos “alternativos”.
O seu principal objectivo era a construção “verdadeira” de uma casa de alterne com vida própria. Encontrar os rituais de comportamento que “não se aprendem rapidamente”, saber quais são os “tiques de linguagem e maneira de ser” dos patrões, enfim, arranjar o décor perfeito para os actores estagiarem.
Após 85 casas de alterne percorridas, o realizador consegue finalmente o espaço e o tempo para o seu filme. É um único cenário, escolhido intencionalmente, para reunir as principais características do submundo da prostituição. Os cheiros, as formas, as cores primeiro “estranham-se”, mas são de tal forma reais que as personagens de repente apareceram. Ou seja, Fernando já era Nelson, Rita já era Celeste, Beatriz já era Carla e Cleia já era Sónia. Estas personagens são resultado da combinação de várias formas de vida que Canijo reuniu.
Embora o trabalho de pesquisa tenha sido exaustivo e custoso, o cineasta já sabia que rumo dar à história.

A tragédia grega na casa de alterne

“ A Infigénia de Aulis” de Eurípedes anda com João Canijo há anos. Conta a história do rei Agamémnon que sacrifica a filha para que a sua empresa tenha bons augúrios dos deuses.
Concebendo este caso a partir de Portugal, a ideia do mundo da prostituição surgiu naturalmente ao realizador. É um mundo em que “ a tragédia pode passar anónima, já que tudo é ilusão e vontade de fazer dinheiro, mais nada.”
“Noite Escura” é “ um mundo que vive de fazer as pessoas acreditar em coisas”. Os clientes acreditam no que as raparigas, cheias de charme, lhes sussurram, Celeste acredita que gere a casa com seriedade e bom gosto, portando-se como uma senhora, Sónia acredita que vai ser cantora pimba e Nelson acha que os seus negócios vão correr sempre bem.
Todavia, é de um negócio mal resolvido que Nelson (Agaménmon) tem que sacrificar a sua, virginal e “por estrear”, filha Sónia para os russos, dizendo-lhe que vai para Madrid ser cantora.

Dimitri, o Vilão

Por vezes, são curiosas as peripécias que passamos para alcançar algum objectivo.
Dimitri Bogomolov é um actor russo, de rosto doce e pueril e com um olhar tímido. Chegou da Sibéria Central e representa a personagem de Fyodor. Um homem frio e cruel da máfia russa que vai cobrar o que lhe é devido: a filha mais nova. É uma figura que transpira corrupção moral e é dotada da força hedionda do poder.
Dimitri licenciou-se em teatro e cinema. Conseguiu emprego mas o salário não chegava para sustentar a família. Emigrar foi a solução encontrada e Portugal o país eleito para o destino. Cá, deram-lhe emprego. O actor formado foi trabalhar para a construção da A2. O teatro e o cinema continuavam a ser o seu principal objectivo, mas ainda eram um sonho longínquo. A sorte acabou por lhe bater à porta e entrou para uma companhia de teatro onde é professor. Canijo, também professor na mesma companhia, acabou por se cruzar com ele dando-lhe o papel de Fyodor. O realizador afirmou que era impressionante a minúcia da preparação da personagem feita por Bogomolov.
Este é só mais um caso de um emigrante que conseguiu fazer aquilo que gosta num país que o desconhece. As obras na A2 já são, apenas, uma mera recordação…

Conclusão

“Noite Escura” é um filme que está a dar que falar. Esteve no último Festival de Cannes, foi seleccionado para o Festival de Montreal 2004, Festival SeNef na Coreia, Festival Internacional de Cinema de Vancouver (Canadá) e de Haifa (Israel) e para o IndieLisboa.
O filme é a representação do lado negro da alma humana situada no mundo escondido, cruel e sórdido do tráfico e da prostituição. Apesar desta visão violenta, os afectos e o amor continuam a resistir à degradação.
É uma película com actores fortes para personagens que não amamos. Estas perderam o mapa do território dos sentimentos. Fingem que não vêm e vivem uma realidade paralela, acreditando ser essa a verdadeira. Mas não será assim Portugal!?
Um grande filme!